Blog Andando por Aí

Os cogumelos e seus apaixonados

 

Professor Jair (a direita) explicando detalhes de um cogumelo

No final de semana passado realizamos aqui em Canela, na sede da Fazenda Sonho Meu, mais uma edição do curso de identificação de cogumelos silvestres comestíveis. Novamente foi um sucesso, esta que já passa da decima edição, reunindo quase cinquenta pessoas de diversos municípios do Rio Grande do Sul. O que me chama muito a atenção nestes cursos, além do conhecimento e da experiência que é transmitida pelo Biólogo Jair Putzke, é a diversidade profissional dos interessados que comparecem. Por ser uma área específica da biologia – a Micologia, o normal seria atrair acadêmicos e profissionais da área das ciências biológicas e afins, mas não é o que se verifica.

A atração exercida pelos cogumelos tem trazido, além dos acadêmicos e biólogos, uma gama de interessados que me faz pensar que estes organismos tem um poder muito além do fascínio e da curiosidade. Desfilam nos cursos, sem o mínimo de constrangimento e incômodo, engenheiros, médicos, arquitetos, chefs de cozinha, aposentados de diversas áreas, agrônomos, veterinários, etc... Os cogumelos hipnotizam, encantam e, quanto mais estranhos e desconhecidos, melhor. Sair a campo capitaneado pelo professor Jair é, por si só, uma aventura garantida e a cada espécie encontrada vem uma história, um acontecimento e uma possibilidade de transformar aquele achado em subsídio para um novo prato saboroso ou ser mais um troféu na lista de espécies identificadas com segurança, já que um erro na identificação pode levar a pessoa a complicações de leve a graves, incluindo alguns casos de letalidade.

Observar os participantes atentos às explicações e experiências do professor, questionando, trazendo vivências de outros locais e se encantando com o que lhes é apresentado, é um exercício fascinante e um dos principais fatores que faz com que este curso, de periodicidade anual, seja tão aguardado e suas vagas disputadas. Nesta última edição tivemos que nos conformar com a seca que rondou e retardou um pouco o desenvolvimento dos cogumelos, típicos desta estação outonal, mas mesmo assim foram coletadas e identificadas mais de 60 espécies diferentes.

Há participantes que “repetem” o ano e cursam duas, três ou mais vezes seguidas para sedimentarem bem seu aprendizado, uma vez que o conteúdo desenvolvido é extenso e recheado de nomes complicados, desconhecidos e estranhos à maioria. Mas isto parece não assustar ninguém e eu sempre sugiro que eles devem se concentrar em conhecer bem os detalhes que permitem a identificação segura de uma dúzia, mais ou menos, daqueles cogumelos mais frequentes e saborosos. O conteúdo é muito extenso e complexo, mas o mestre Jair consegue, através de sua didática de campo, rara e preciosa, transmitir de forma leve e humorada fazendo com que o dia passe leve e cheio de surpresas.

Colheita abundante de cogumelos comestiveis.

Este curso ocorre sempre no primeiro final de semana de maio, a melhor época para encontrar os cogumelos, já que tem a janela anual de ocorrência estreita que vai de abril a maio, como algumas variações impostas pelo clima. Logo que terminada uma edição, começam os preparativos e contatos para a edição do ano seguinte, iniciando sempre pela captura e reserva da data para o ano seguinte na lotada agenda do professor Jair. Aqueles que não puderam participar agora, já reservam vagas e assim se vai construindo o próximo encontro organizado desde o início pelos profissionais da Pampeana Produções Ambientais.

Sempre achei que o desconhecido atrai, encanta e assusta e os cogumelos se encaixam perfeitamente neste quadro, já que há em torno deles um grande desconhecimento, muita mística e um grande desperdício de uma rica e abundante fonte alimentar que pode garantir sustento, se não integral, pelo menos parcial para quem deles se afeiçoar e perder aquele medo atávico de que são venenosos, mortais ou alucinógenos. Sim, temos todos estes tipos por aí, mas este curso foi criado para justamente olharmos e sabermos selecionar entre a abundante oferta de outono aqueles palatáveis e de sabor único e com gosto de natureza pura.  

Cores e sabores de um mundo desconhecido

Ocaso, fogo e registros

Final de tarde nos campos de altitude de São José dos Ausentes, RS

O dia vai terminando, as sombras das coisas se alongam sobre o campo parecendo gigantes magros, a cor verde das araucárias começa a ficar dourada por alguns minutos apenas, contrastando com o tom azul, branco e alaranjado do céu com poucas nuvens. A fauna vai se acomodando e rematando as atividades do dia, preparando-se para atravessar o breu e o frio da noite que não tarda.

Gosto desta hora e deste espetáculo de troca de turno e de cores na natureza e decido continuar pelo campo. Recolho alguma lenha e nós de pinho que encontro e faço um fogo perto de uma grande pedra coberta de musgos, líquens e bromélias bem na divisa com um potreiro que abriga algumas vacas mansas que exercitam o paciente hábito da ruminação, após passarem muitas horas pastando e enchendo seus estômagos. A vista corre para o leste e vejo luz ainda no morro da nascente, que o sol se esforça por iluminar jogando seus últimos raios nas partes altas do planalto. O campo já mergulha na sombra que prenuncia a noite.

Abasteço o fogo e a luz quente e vermelha me convida a escrever. Um bem-te-vi atira ao ar seus últimos gritos, tentando encontrar seus parceiros e poleiro para passar a noite. Uma maria-faceira sibila o canto longo e inconfundível, parecendo um assobio triste e melancólico, e passa em um voo raso por sobre o gramado, dirigindo-se ao seu dormitório. Os quero-queros não se acomodam e gritam a todo momento com o menor movimento em seu campo de domínio.

Tico-ticos ticam seu som de outono de uma só nota e duas saracuras executam o derradeiro canto do final do dia na beira de um arroio de mata, seu local favorito. O sibilo do sabiá-laranjeira e das saíras é ouvido e seus voos curtos indicam que se recolhem, sem fogo e sem o calor das labaredas. Mas eles não necessitam deles como nós, muito mais dependentes deste elemento atávico.

Um silencioso e invisível mosquito conseguiu seu intento e, habilmente, sugou da minha panturrilha o sangue que o alimenta, indiferente aos movimentos que pratico no teclado do notebook e no ir e vir da mão para abastecer o fogo. Inseto rápido e decidido o mosquito, que se aproveita do calor emanado do meu corpo e do meu sangue quente para nutrir-se. O fogo começa se destacar mais e mais a medida que o sol se entrega e permite que a noite deite seu negrume sobre o campo. Um silêncio gostoso vai dominando a paisagem e o crepitar das labaredas entoam uma música ancestral que tanto me encanta. As chamas da fogueira hipnotizam pelo fato de serem sempre mutantes, nunca igual em suas formas, que se recriam enquanto tiver lenha para manter o fogo. A cada momento assumem formas e tamanhos diferentes, como faz a água em uma corredeira. Parece que a natureza não gosta de repetir formas. Assim é possível ficar horas seguidas apreciando o fogo que, de uma maneira agradável e estranha, amarra o meu olhar. A luz e o calor emanados de suas figuras são magnéticas, e mantiveram o homem das cavernas aquecido, cozinhou sua carne e espantou predadores. Começo a escrever menos em função do escuro e passo a me concentrar mais no espetáculo das labaredas e do colorido do céu.

Fileira de pinheiros em um final de dia nos campos de altitude

Fico no aguardo da lua que, em sua fase cheia, não deve demorar, e troco o meu olhar para o seu lado, abandonando o poente, onde o sol já vai longe iluminando outros rincões da terra.  O homem sem o fogo não teria chegado onde estou agora. Pedaços de madeira queimando na fogueira da mesma forma como o mais primitivo homem das cavernas fazia. Agora, com um notebook aberto, faço um registro deste final de dia e tento deixá-lo gravado eletronicamente em um local que não entendo bem. O homem primitivo devia fazer o mesmo, apenas que gravava em seu cérebro, este HD vivo que se deteriora quando a vida se extingue, o que nos fez perder muito da nossa história. Alguns tiveram a brilhante ideia de deixar alguns registros impressos em paredes protegidas de cavernas, na forma de arabescos e garatujas, que até hoje podemos apreciar e conhecer um pouco mais do nosso passado.  Por isso escrevo o que sinto e vejo, deixando armazenado em uma mídia que pode perdurar mais do que eu próprio. Isso me move, por isso deixo registros para que alguém possa ler hoje, amanhã ou daqui muitos anos e estas pessoas possam sentir o calor do fogo, o encanto do sibilar das aves se recolhendo e o sol partindo e deixando a cargo do fogo e da lua, um pouco de luz para uma noite que chega.  

Pinhão achado.

 

Tem algumas coisas na vida que dou mais valor em relação a outras, que considero melhores e com um sabor singular. Há circunstâncias que são únicas, não se repetem com frequência e deixam lembranças marcadas como tatuagens, perenes e sempre vivas na memória. Um deles é meu hábito anual de catar pinhão maduro no mato. Achar o pinheiro fêmea que gentilmente cedeu seus pinhões ao solo, após maduros que estavam, é como encontrar um tesouro, com a diferença que o butim está à mostra, e não enterrado. Ver aqueles cones dourados espalhados e salpicando o chão, entremeados entre folhas e grimpas, estimula a coleta de alguns para o consumo imediato neste início do outono. Dependendo do local e da data, é fácil encher uma mochila e voltar para casa satisfeito, como se o desejo ancestral de trazer comida para casa fora realizado com êxito, sabendo que há muito mais por lá e que muitos são os comensais da mata que usufruirão deste manjar. 

Esta semente acobreada, que tem a forma cônica e aspecto curioso, com aquele único espinho na base, parece um pequeno dardo que é atirado pelo pinheiro com auxílio do vento para que vá longe, crave no solo fofo da mata e germine. Como as tartarugas, que colocam milhares de ovos para que um ou outro chegue a fase adulta, as araucárias produzem milhares de pinhões para que poucos sigam a sina de crescerem, escapando das armadilhas do ambiente – predação, fogo e seca para chegarem a fase adulta e repetirem o que fazem seus ancestrais.

No chão, já longe da pinha, os pinhões são catados por quem os aprecia, sejam eles humanos ou não. As grimpas, estas espinhentas folhas mortas dos pinheiros, querem proteger os pinhões, criando dificuldades para que sejam apanhados, espetando dedos e focinhos de quem tenta apanhá-los. Parece uma estratégia de segurança do pinheiro, uma derradeira tentativa de esconder as sementes dos predadores, que escorregam muito facilmente por entre os espinhos e se metem ao abrigo junto ao solo, protegendo-se nos seus meandros. Muitas espetadas nos dedos e flexões das costas são o preço a pagar por catar os pinhões no mato, mas o prazer é prontamente suplantado pelo sabor deste pinhão maduro e o conhecimento da origem do produto, bem diferente de comprar um quilo da semente em um mercado, quando desconhecemos de onde veio e como foi catado.

Durante a catação dos pinhões vejo que muitos já foram achados e consumidos antes de mim, fato comprovado pelas inúmeras cascas vazias sobre o solo. Isto me mostra a grande cadeia alimentar que se estabelece nesta época pelas matas de pinheiros, onde ouriços, gralhas, saracuras, papagaios, tiribas, veados, roedores pequenos do solo e outros tantos comensais se fartam com este maná. Por isso cato com respeito e não de forma predatória, sempre deixando uma parte para aqueles que, assim como eu, gostam muito desta preciosa semente e, diferente de mim, aqui vivem e dependem delas mais do que eu.  

Este pinhão catado é amadurecido na pinha e cai no momento em que está maduro, o que explica seu valor e sabor. Ele tem uma massa levemente adocicada, firme e de um retrogosto indescritível, algo que se completa muito bem com uma carne desfiada com molho de tomates ou uma boa linguiça, arroz com páprica defumada, alho e um cálice de vinho.

Todos gostam de pinhões, sejam assados na chapa de um fogão a lenha, cozidos na água ou tostados em uma fogueira de grimpas. O paradoxo é que nem todos que gostam do pinhão, gostam das araucárias. Alguns comem a semente com prazer, mas não gostam da presença de quem a produz, por considerarem as árvores importunas, perigosas ou boas mesmo para serem transformadas em tábuas. Temos leis restritivas apoiando a conservação desta rara espécie, mas elas criam alguns problemas que acabam mais destruindo do que preservando a árvore. Pinheiros urbanos são sim ameaças as casas, fiação elétrica aérea e outros inconvenientes, o que faz com que cada vez mais, tenhamos menos araucárias pela cidade. Mas o gosto pelo pinhão, ao contrário, só aumenta. Assim as coisas são: apreciamos o pinhão, mas não queremos por perto os pinheiros.

Pais e filhos

 Ser convidado por uma gurizada que tem a idade do meu filho, na faixa dos 28 a 30 anos, para uma janta que eles intitularam de “Pais e filhos”, é algo muito diferente e que me deu um grande prazer. Lá estavam, como era de se esperar, o meu filho João Pedro e a sua turma de amigos de infância, ou nem tanto. Gurizada de fé, caras boas e ideias arejadas, cheios de energia, alguns já com filhos e a vida inteira pela frente. Do outro lado nós, os coroas, os pais deles que já passamos pela fase que eles estão agora, já os criamos, educamos, ensinamos e colocamos neles alguns de nossos vícios. Vivemos uma vida bem mais longa, a maioria de nós com mais do que o dobro da que eles têm agora, e estamos de espectadores dos rumos e feitos que eles desenvolvem. Foi uma grande confraternização, uma festa verdadeira onde nós, os pais, fomos muito bem servidos pelos nossos filhos, tanto na bebida, na comida, no carinho e no forte amor demonstrados por todos, já que estamos amarrados pelos laços de sangue e de amizade, duas das cordas mais fortes que conheço.

A comida foi preparada por eles e servida empratada para cada pai presente: carne de panela, arroz e batata frita. Simples como a vida, saborosa como a amizade e o amor. O chope correu solto e embalou os espíritos e soltou as lembranças de situações vividas pelos pais, para curtição e atenção dos filos, e dos filhos, para curtição e espanto de alguns pais, que ficaram sabendo de algumas histórias mais sinistras e medonhas dos filhos neste encontro. Mas como todos sobreviveram, a confraternização seguiu com muitas risadas, abraços, fotos e promessas de repetira a dose, assim que possível for.

Estes encontros de duas gerações, são demais! Atiçam os mais velhos a falarem de suas lembranças mais caras, mais ousadas e mais importantes, aumentando o aperto no nó que prende as gerações, cultivando uma intimidade que aproxima cada um mais e mais, tornando-se mais conhecidos e vendo que a vida se repete de forma extraordinária. Nós, os mais velhos, temos algumas histórias interessantes para contar, mas eles, os mais novos, tem um leque de outras histórias que para mim são inimagináveis. Ver meu filho contando as histórias vividas na Austrália quando resolveram arrumar um trabalho temporário visando conseguirem recursos para irem até a Indonésia, faz com que eu agradeça a ele por não ter me contado tudo quando por lá estiveram. Lembrei dos meus tempos de guri de 20 anos e me dei conta que nesta fase da vida, tudo é possível. As gargalhadas atravessaram a noite, interrompidas por alguma nova história, tanto da minha geração como a deles.

Alguns pais não puderam participar, mas seus filhos estavam. Alguns filhos estavam ausentes, mas seus pais, presentes. Isso reforça os laços de amizade e de confiança e perpetua no tempo a certeza de que ali há um verdadeiro grupo de amigos, um verdadeiro entrevero de duas gerações que comungam muitas coisas e que se mantem vivas as melhores memórias de cada uma, quando nós mostramos a eles os caminhos do mundo e agora eles nos mostrando quais os caminhos que escolheram e seguem. Um espetáculo digno de uma segunda feira a noite. Que se repita este entrevero de gerações. Parabéns aos organizadores, parabéns a nossa geração que gerou esta que nos recebeu tão bem e que nos transborda de muito orgulho.

A conversa da gralha-azul

Uma gralha-azul com seu tesouro no bico

Parece coisa de maluco, mas eu afirmo que já ouvi, muitas vezes, a sutil conversa das gralhas-azuis. Isso mesmo, uma conversa em baixo volume, quase imperceptível. Todos sabem do adágio que diz que pessoas que falam alto, de forma estridente e continuada, são comparadas às gralhas: “parecem umas gralhas”, se diz. Acontece que há um outro repertório sonoro que elas utilizam, além deste festival de gritos emitidos quando um bando se sente ameaçado em seu território. Eles servem como um alerta que é disparado por aquelas que ficam de sentinela, enquanto o resto do bando se alimenta, alertando os demais para um perigo eminente.

Em algumas ocasiões, quando consigo me aproximara de um bando sem ser percebido, ouço o suave sibilo das gralhas, que parece nitidamente uma conversa ao pé do ouvido, de baixo volume. Para ouvir esta “prosa”, o local tem que ser ermo, silencioso e eu não posso ser visto por elas. Dentro da mata de pinheiros, sentado quieto em algum tronco, pedra ou no chão, fico dissimulado no território do bando e começo perceber, apurando o ouvido, que se desenrola um diálogo muito baixo, intenso e contínuo entre os diversos indivíduos do bando. É um som de estalidos e pios como se cochichando elas estivessem, enquanto se alimentam. É um momento raro que consigo desfrutar junto a intimidade do bando, que pode se traduzir por alguma discussão sobre os pinhões, que são abundantes e muito saborosos, onde enterrá-los, quais os pinheiros que estão com as pinhas maduras, etc. Isso tudo se desenrola num cenário idílico, cheio de cheiros e sons suaves produzidos pelo vento e pelas gralhas dentro da mata de araucárias. O bando segue se alimentando e “conversando” em tom muito baixo e imagino que podem, muito bem, estarem discutindo sobre a presença discreta de um estranho que está no solo, sentado sem se mover, parecendo um humano.

Vejo, sem me mover, que de vez em quando uma das gralhas desce ao solo com um pinhão no bico e procura um local seguro para enterrar a semente. Anda atenta até encontrar uma fenda entre pedras, troncos ou moitas com folhas formadas pela serapilheira, a semente dourada é cuidadosamente acomodada e coberta, como se um tesouro fosse. Este comportamento preventivo visa a criação de depósitos espalhados pela floresta toda, próximos ou distantes do pinheiro fêmea que os produziu, visando o abastecimento em dias mais difíceis, fora da estação de abundância – o outono. Muitos destes tesouros germinam antes das gralhas resgatarem o seu dividendo, tornando-se novas araucárias e garantindo a disseminação da espécie.

Um aentinela do bando cuidando e dando o alerta com a minha presença

Quando canso de ouvir a conversa do bando, levanto e estico as pernas cansadas de estarem dobradas, ando um pouco e sou logo identificado pelas sentinelas com um intruso de fato, uma ameaça verdadeira. Imediatamente cessa o chilreado discreto do grupo e tem início a gritaria que chega a tontear de tanta estridência e intensidade, quebrando o silêncio açucarado do local. Muitas gralhas se aproximam de mim, olhando e gritando, tentando intimidação e forçando o meu afastamento. Quando resisto a evasão, quem se afasta é o bando, saindo uma de cada vez, sumindo sem barulho de asas entre os galhos das araucárias, aborrecidas pelo incômodo que causei, interrompendo um momento importante do grupo, um momento de comer e conversar. É como se alguém chegasse para perturbar um almoço onde se confraterniza uma boa comida e a conversa flui descontraidamente, obrigando a todos se levantarem e abandonarem a mesa, não sem muitos protestos sonoros e ameaças ao invasor. Compreendo as gralhas e tento, sempre que possível, não interromper seus momentos de forrageamento e socialização. Elas, como nós, necessitam destes momentos.

As estradas caçadoras

Zorrilho atropelado, uma das milhares de vitimas da nossa biodiversidade.jpg

A caça, oficialmente, é proibida no Brasil, com exceção feita a algumas espécies introduzidas (exóticas), caso dos javalis, invasores agressivos e nefastos ao ambiente natural, e as lebres. Matar uma capivara silvestre para comer é crime, assim como qualquer outro animal da fauna considerada nativa do Brasil. Países do Prata têm caça permitida para algumas espécies como a perdiz, o perdigão, e várias espécies de marrecas, sempre atendendo a um calendário que respeite o ciclo de vida das espécies.

Poucos se dão conta de que há, por todo o nosso imenso território nacional, milhares de eficientes caçadores espalhados como serpentes por todos os ambientes, sejam parques de preservação, praias, cidades ou desertos. Esses caçadores são as nossas estradas e a munição, os carros, os caminhões e os ônibus. Mata-se mais nas estradas do que em qualquer outra circunstância, e a culpa é atribuída, singelamente, aos próprios animais que andam onde não devem, como se pudessem perceber os perigos de um veículo em movimento em uma estrada qualquer.

A noite é o período mais nefasto para a fauna que, ignorante do perigo, atravessa, permanece ou mesmo anda sobre as estradas, indiferentemente ao movimento de veículos, sendo atropelada e, muitas vezes, causando graves e até fatais acidentes para os condutores. Esse é um fato que se lamenta e não se tem uma solução eficiente, já que as estradas são tão vitais como é a necessidade dos animais de se movimentarem, instinto que os impulsiona à busca de alimento, de parceiros e abrigo.

Quanto mais estradas, mais carros e mais mortes. A equação não é fácil, já que um não entende o outro. Um permite o andar rápido por necessidades diversas, como entregar uma carga, chegar a um destino de férias, ou retornar para casa; outro anda lento, sem pressa, atrás de comida; cuida dos filhotes ou foge de predadores naturais. O atrito é iminente e, na maior parte dos casos, impossível mesmo de ser evitado.

Tem razão o homem quando, para evitar um acidente maior, atropela um quati, um zorrilho, um lagarto, uma tartaruga, uma pesada capivara ou um mão-pelada que se atravessa na via. Tem razão o quati, o mão-pelada, a capivara, o lagarto, a tartaruga e o zorrilho que apenas utilizaram mais um espaço do seu já reduzido ambiente para se deslocar.

De quem é a culpa? Dos bichos por andarem? Dos homens que construíram e utilizam as estradas?

Há um grupo de pesquisadores da UFRGS – o Núcleo de Ecologia de Estradas e Rodovias (NERF) – que, desde 2011, tem o objetivo de avaliar os efeitos das estradas sobre a biodiversidade e, sobretudo, criar procedimentos e ferramentas amostrais e analíticas para apoiar os licenciamentos dessas obras.

Os dados que levantam são assombrosos e mostram o potencial nefasto que as rodovias têm para eliminar uma fatia considerável da nossa biodiversidade, principalmente mamíferos e répteis (https://www.facebook.com/nerf.ufrgs).  O atropelamento de animais em rodovias é considerado a principal fonte antrópica de mortalidade direta de vertebrados terrestres em diversas regiões do mundo (Siriema – http://www.ufrgs.br/siriema/).

Outro projeto que trabalha com dados de atropelamento de estradas é o Centro Brasileiro de Estudos de Ecologia de Estradas (CBEE), que tem um portal no qual qualquer pessoa pode se cadastrar para enviar fotos de animais atropelados que são analisadas pelos especialistas, identificadas as espécies e os registros jogados no sistema.

As estimativas mostram que mais de 15 animais morrem atropelados nas estradas brasileiras a cada segundo e que, diariamente, devem morrer mais de 1,3 milhões, chegando-se à absurda cifra de 475 milhões ao final de um ano. Nenhum exército de caçadores conseguiria atingir essas sinistras marcas. Você também pode colaborar com informações, cadastrando-se no sistema Urubu (http://cbee.ufla.br/portal/sistema_urubu/) e passar a enviar fotos para ajudar a encontrar formas de preservar a vida dos condutores dos veículos e dos animais que cruzam pelas rodovias.

Acho que ainda estamos sendo muito egoístas em culpar apenas os bichos, já que somos nós que nos imiscuímos onde eles estão. Mas isso é muito polêmico e necessita de muitos estudos, consciência e outras crônicas para que se consiga alguma luz.

 

Zorrilho atropelado, uma das milhares de vitimas da nossa biodiversidade

 

 

Advertência para os motoristas, mas não para a fauna

Datas comemorativas de março

Vejo março como um mês especial no calendário, por diversos motivos e por características únicas. É aquele mês do ano quando a curva de temperatura sufocante do verão começa a dar sinais de arrefecer, tornando os dias ainda quentes, muito agradáveis, mas não sufocantes. É que em março se inicia oficialmente o outono, este mês tradicionalmente associado como mudanças no clima, na paisagem e no comportamento de bichos e homens.Vejo março como um mês especial no calendário, por diversos motivos e por características únicas. É aquele mês do ano quando a curva de temperatura sufocante do verão começa a dar sinais de arrefecer, tornando os dias ainda quentes, muito agradáveis, mas não sufocantes. É que em março se inicia oficialmente o outono, este mês tradicionalmente associado como mudanças no clima, na paisagem e no comportamento de bichos e homens.
As datas comemorativas são criadas para homenagear categorias, grupos ou pessoas de relevância, para que fiquem vivos na memória e reforcem os seus princípios ou a importância que tem frente à sociedade ou à natureza. Nesse grupo – natureza – tem muitas datas que visam a oxigenar e a enaltecer alguns elementos pela importância que tem para o planeta e para a sociedade.
No dia 20 ou 21, dependendo do ano, comemora-se no hemisfério Sul o início do outono, quando dia e noite têm o mesmo número de horas (equinócio = noites iguais), uma data importante por mudar o clima e o humor das pessoas. É a virada do tempo, quando aqueles dias longos do verão vão cedendo o terreno para que as noites se alonguem, trazendo as pessoas mais tempo para dentro das casas e perto de fogões e lareiras.
Dia 21 é comemorado o Dia Mundial das Florestas, uma homenagem quase constrangedora que se faz, visto que são elas, as matas, que são tidas como grande entrave ao desenvolvimento da sociedade humana. Só no Rio Grande do Sul, quase a metade do território era, no início da exploração pelos portugueses, coberta por diferentes tipos de matas.
Fico me perguntando o que se comemora nessa data, já que floresta é quase um sinônimo de passado, de atraso, de empecilho, de estorvo. Quando estou dentro de uma mata tento, responder a uma pergunta: por que temos que optar entre nós ou ela? Não conseguimos viver sem florestas, mas também não conseguimos viver muito próximos delas. Um paradoxo.
Dia 22 é a vez de se comemorar o Dia Mundial da Água, parecendo que o mês de março é o mês da consciência pesada do homem. Comemorar o Dia da Água, sabendo de tudo o que fazemos com ela é, no mínimo, hilário.
Ver como tratamos esse elemento vital, seja pela indústria ou pela urbe, fica constrangedor comemorar um dia para a água, elemento do qual necessitamos durante muitas horas de todos os dias de nossa existência. Tratar mal uma coisa que tanto necessitamos parece algo insano, mas é verdadeiro. E para arrefecer um pouco, dedica-se a ela um dia.
Dia 23 é a Meteorologia que recebe as homenagens, essa ciência importante que nos antecipa com algumas horas ou dias os movimentos das massas de ar quentes ou frias, que podem trazer ou reter chuvas, ventos e toda sorte de fenômenos construtivos ou destrutivos que bem conhecemos.
Assim seguimos utilizando dos recursos do nosso planeta de forma predatória e excludente, mas para aplacar um pouco o dano, criamos os “dias de...” que, a meu ver, não servem para absolutamente nada, a não ser para mostrar o dano cada ano maior que fazemos aos homenageados.
Para amenizar um pouco o peso desse desabafo, vejo que neste mesmo mês de março se comemora, no dia 26, o Dia do Cacau. Salve o chocolate, que vem adoçar um pouco esta amarga realidade das comemorações internacionais das coisas da natureza!

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Rio camaquã no Rincão do Inferno

 

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Cascata do Passo do S em Jaquirana - água abundante e mal tratada

 

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Mata de araucária sempre visada pela madeira

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