Blog Andando por Aí

Ouro e fogo.

 

A esquerda um Ginkgo biloba dourando suas folhas, à direita um Acer avermelhando. Sinais coloridos do outono. 

Neste período do ano o sol começa a mudar de lugar nascendo e morrendo cada dia mais para o norte, diminuindo o calor por aqui e abrasando cada vez mais o hemisfério boreal. Como sabemos que não é o sol que muda e sim é a terra e seus movimentos em torno dele que nos afastam ou nos aproximam do astro, podemos perceber nitidamente que o outono, estação que ainda vivemos, é um período de gatilhos que disparam sinais térmicos, visuais e comportamentais da aproximação do inverno.

Nas ruas de Canela e em toda a Região das Hortênsias é possível ver isso de forma muito clara e fascinante. O outono tem uma graça única, superior mesmo, pois consegue transforma a morte de folhas em um espetáculo de cores que pintam o céu e o chão com desenhos que mudam a cada dia. Falo especialmente de duas espécies de plantas exóticas, trazidas de muito longe pelo seu encanto outonal, e que hoje caracterizam esta estação por aqui, assim como as flores de hortênsias indicam o início do verão.

Uma destas, a mais rara, é o Ginkgo biloba, uma espécie originária da China, antiga como nossos pinheiros e xaxins, tem o hábito de se proteger dos rigores do inverno perdendo suas folhas no outono. E aí se concentra sua principal arma de beleza. A coloração verde de primavera e verão vai cedendo a um progressivo tom dourado que acaba tonado a árvore um espetáculo a ser admirado e fotografado. Suas folhas parecem absorverem a luz do sol ficando iguais, cor de ouro forte que, ao contrário do astro, não se sustentam e caem.  

Outra árvore emblemática que sinaliza a aproximação do inverno é o Acer, conhecido como bordo-japonês, radicalizou mais na coloração das folhas tornando-as de um vermelho vivo intenso, parecendo que necessita ser vista para alertar que o inverno está chegando. Originário do oriente, mais precisamente do Japão, esta espécie de árvore vem se difundindo bastante na arborização urbana por não ser agressiva com suas raízes, ao contrário dos plátanos e liquidambares que, dependendo do local e da profundidade do solo onde forma plantados, arrebentam calçadas, ruas e alicerces.

O chão e o céu se pintam para anunciar o frio e os dias mais curtos. Isto pode ser bem poético, cênico e romântico, inspirando pessoas como eu a escrever e outras a criarem arte com as folhas mortas, perpetuadas em quadros e pinturas. Há também aquele grupo de pessoas que odeiam a estação devido ao trabalho para remover quase diariamente as folhas que caem em seus jardins ou calçadas. A diversidade de gosto das pessoas é espetacular, podendo a mesma folha dourada do Ginkgo instigar arte, indiferença ou ódio. A foto que ilustra esta crônica eu fiz em frente à Prefeitura Municipal daqui de Canela, onde Acer e Ginkgo ladeiam a entrada saudando as pessoas que por aqui passam ou entram na casa do povo. São bandeiras coloridas da estação, saudando o final do período seco e quente e o início do ciclo do fogão a lenha.

Sete anos de uma aventura literária

Uma cutia se alimentando de pinhão, seu alimento preferido no outono

Num certo dia do final maio de 2012 o meu amigo Sergio Luiz dos Santos, então um dos novos donos do Jornal Nova Época, convidou-me para escrever uma coluna semanal sobre meio ambiente na nova fase do jornal que ali iniciava. Pensei um pouco na responsabilidade e obrigação de criar textos não técnicos sobre natureza, acessíveis ao público do jornal, para todas as sextas feiras, e disse a ele que eu não tinha experiência em escrever neste formato e de maneira sistemática para jornais. Falou para pensar com carinho e disse que aguardaria uma resposta. Depois de alguns dias, imaginando que poderia ser um bom desafio, acabei aceitando o encargo. E assim me dediquei a traduzir o que via na natureza e no meu dia a dia, e transformar tudo em crônicas de fácil leitura e com o apoio de fotos que, para mim, sempre foram de grande valor para ilustrar um texto, muito utilizado por mim nos tempos de ensino na Universidade. Assim nasceu a primeira coluna, de meia página naquela época, quando utilizei a estação do ano e as suas características para traduzir o que via e o que sentia. Tomo a liberdade de reproduzir aqui, para aqueles que não leram na época, ou para os que leram e não lembram, a minha primeira crônica para este jornal publicada em 8 de junho de 2012.

 O trabalho silencioso da fauna na floresta de araucárias

Nesta época do ano e até o final de julho, nos habituamos a ver nos pátios, praças e parques com araucárias, os pinhões maduros no chão. O que não é tão visível é a presença de um verdadeiro exército de animais nativos que, além de se alimentarem ativamente desta semente, espalham-nas para áreas distantes (dispersão). Uma lista de espécie de aves e mamíferos, alguns conhecidos e outros nem tanto, fazem este trabalho silencioso e permanente que vai garantir o surgimento de uma nova geração de araucárias.

Cutia, gralha-azul, papagaio-peito-roxo, serelepe (esquilo), roedores pequenos, bugios e tiribas são alguns dos representantes da fauna nativa que de alguma forma contribui para o “plantio “ dos pinheiros. Dentre todos estes, destacamos a cutia, um roedor nativo da América do Sul que vive associado sempre as matas, local onde encontra seu alimento (frutos, sementes, raízes e talos de plantas), abrigo e local para ninho. Como um hábito de previdência, a cutia enche a boca com vários pinhões e sai enterrando um a um, de forma aleatória pela redondeza. Com o passar do tempo ela volta e os desenterra para se alimentar. Neste processo, muitos pinhões germinam antes da cutia voltar, e assim novas árvores surgem todos os anos para garantir as gerações futuras mais e mais pinhões. Mais do que a gralha-azul, a cutia é a grande responsável pela regeneração natural das araucárias. Uma saudação especial às cutias nesta semana que se comemora o dia mundial do Meio Ambiente.

Assim começou meu hábito ir, ver e escrever que, até agora, não arrefeceu. Sempre apoiado pela direção, que logo mudou e passou ao comando da minha amiga Marina Gil, obtive a liberdade para criar, viajar e trazer novidades. Assim, nestes sete anos, fui para o Topo do Rio Grande, para os cânions e bordas dos aparados, para a Lagoa do Peixe, para o Rio Camaquã, para Ushuaia, lá no fim do mundo e para o deserto do Atacama, sempre tocado pela vontade de buscar inspiração para escrever e fazer fotos originais. Minha escrita evoluiu, mudou um pouco de direção e de estilo, mas sempre com o objetivo de retratar o que considero inusitado, interessante e original numa natureza na qual me inspiro e me insiro completamente.

Muito importante para mim foi, também, o retorno que tive dos leitores que sempre me estimularam a escrever, escrever e escrever. Um saludo especial a direção e a todos os profissionais deste jornal diferenciado que, nestes sete anos, não cansou de contar nossa história, tanto a do presente como a do passado. Que venham mais vários sete anos de trabalho.

Preparando a nova partida

Borda do Cânion Monte Negro com a planície de Santa Catarina encoberta

Concluída a série de seis crônicas sobre as nascentes do Rio Uruguai, começo a me dedicar a um novo desafio. A tarefa de escolher o próximo trabalho é sempre muito diferente de escolher uma roupa ou um sabor de sorvete. De repente algo me aponta uma direção, um lugar e surge uma vontade incontrolável de ir, ver e escrever. Nesta ordem. Assim foi quando andei até a cidade argentina de Ushuaia, no extremo sul da Patagônia e do continente sul americano; ou quando passei um ano no Topo do Rio Grande, sendo testemunha das mudanças na paisagem nos campos do planalto nordeste de São José dos Ausentes; ou quando fui conhecer de perto o rio Camaquã, suas praias arenosas e as matas de galeria repletas de guabiju; ou quando apontei para o deserto do Atacama, no Chile, conhecendo de perto a aridez assombrosa daquele local cinematográfico; ou quando fui conviver com as aves migratórias da Lagoa do Peixe no nosso litoral sul.

Agora, parecendo que nada mais há para fazer, ver e registrar, surgiu outra luz apontando para um trabalho mais arrojado, mais longo e que há tempos amadureço. Quando coloco uma ideia na cabeça e mentalizo sua construção, as coisas vão se alinhando e colaborando para que tudo se arrume e convirja para que a solução se apresente clara na minha frente, as vezes de forma repentina e inesperada. Foi o caso deste novo trabalho, que eu tentava já há algum tempo encontrar uma forma de viabilizar e, num átimo, a solução pulou na mina frente. Eu namorava uma tapera que existe aqui em São José dos Ausentes e queria reformar a casa e viver nela por um período longo, sozinho, para poder sentir como é a vida solitária em um lugar isolado e registrar tudo em um livro. Esta é a ideia central. A tapera não prosperou mas surgiu a solução através de um casal de amigos que são proprietários de um container localizado em um lugar ermo, completamente isolado e com vista para o sul do cânion Monte Negro. Eles me ligaram dizendo que vão morar na Nova Zelândia e assim, naturalmente, propus a locação do imóvel que foi imediatamente substituído pela tapera.  

Borda co Cânion da Coxilha, a vista principal que terei durante o trabalho

O nome A Borda, para este novo trabalho, é uma clara alusão ao visual que tenho do lugar, como se eu estivesse empoleirado na borda do Planalto, olhando para o sul. Vou morar aqui, a natureza e eu, por um período ainda não bem claro, mas por pelo menos uns seis meses, quando vou produzir um material que se transformará em um livro sobre esta experiência. Será na forma de crônicas ilustradas – 25 ao todo, e que contarão o meu dia a dia por aqui. O container tem o conforto necessário para as agruras do isolamento e do clima severo da borda, como água de vertente, luz da rede e, para emergência, o Vagalume, meu equipamento solar que me proporciona luz e energia para carregar o notebook e o celular. Tem ainda uma cozinha, fogão a lenha, banheiro e uma cama. Fico distante cerca de três quilômetros da Estância Tio Tonho que será, como sempre, meu apoio para momentos de necessidade extrema ou para um papo com os amigos e um café da tarde com as delícias que só a Antônia sabe preparar. 

Preparem-se, portanto, para uma longa série de relatos de como é a vida por aqui, em detalhes do dia a dia. Meus companheiros mais próximos serão os graxains, as gralhas, seriemas e os gaviões. Optei por não ter um cachorro para justamente me aproximar mais da fauna nativa, apesar de resistir muito e gostar da companhia de um bom pelo duro. Mas o objetivo é uma imersão no mundo natural daqui, e o cachorro, assim como os javalis, bois e cavalos, não pertencem a este universo nativo. Aguardem.

Por onde andei em 2018

Deserto do Atacama com a palha brava em meio a neve e os vulcões ao fundo

O ano de 2018 me levou a inúmeros lugares relevantes que tive o prazer de conhecer ou de rever e de socializar o que vi, fotografei e escrevi com os leitores que me acompanham semanalmente através do jornal Nova Época ou dos meus blogs, no site www.vitorhugotravi.eco.br. Iniciei o ano que passou indo conhecer de perto um dos rincões de grande importância geográfica, geológica e cênica do Rio Grande: o rio Camaquã. Explorei alguns dos lugares icônicos deste importante rio do sudeste, como o Rincão do Inferno e os Paredões do Camaquã. Um rio de uma beleza única pelos seus meandros e depósitos de areia âmbar de uma textura e granulação que fazem cócegas e massagens nos pés de quem por lá se aventura andar. Impressionante também foi a exuberância da mataria que acompanha o rio, com árvores frondosas e frutíferas abundantes, como o guabiju, açoita-cavalo, jerivá e aroeira-periquita, entre dezenas de outras.

Vista do Paredão do Rio Camaquã, um lugar onde o rio é apertado entre dois morros. 

Depois retornei a São José dos Ausentes por puro gosto pelo local, que me fisgou há muito tempo e não canso de ir ver e sentir aquelas belezas que se escondem pelos campos, rios, cânions e matas de araucárias. A Estância Tio Tonho tem sido meu referencial neste canto do Rio Grande, juntamente com a Pousada Monte Negro, lugares de bem receber, divulgar e cultuar e a autêntica mesa serrana, embalada pela tradição do gaúcho de cima da serra e seus hábitos. Voltei em abril para me deleitar com a safra de cogumelos silvestre e me deparei com uma fartura poucas vezes vista.

Bando de trinta-reis no litoral, perto da barra da Lagoa do Peixe

Sempre inquieto, em agosto resolvi conhecer o deserto do Atacama, o mais seco que existe neste nosso planeta. Fui e fiquei encantado com a aridez, o céu sempre azul, as salinas sem fim, cactos gigantes e uma cultura nativa muito forte que se mantém nas cidades pequenas, como São Pedro do Atacama, no Chile e Pumamarca, na Argentina. Viagem longa, quase dez mil quilômetros, fez com que eu atravessasse a América do Sul de leste para oeste, atravessando a cordilheira dos Andes em Passo Jama, ao norte, e ao sul em Passo Libertador. Avistei o Oceano Pacífico no litoral Chileno e mais especificamente na árida cidade portuária de Antofagasta.

Na primavera fui ao Parque Nacional da Lagoa do Peixe, um verdadeiro santuário de aves de todos os tipos e tamanhos, existente no nosso litoral em terras dos municípios de Tavares e Mostardas. Na mesma época em que fui, ocorreu o Festival Anual de Aves Migratórias que atrai à região especialistas nacionais e internacionais para o registro e observação de dezenas de espécies que vão ao local ou para descanso e alimentação, durante suas longas rotas migratórias, ou para reprodução pela abundância de alimento oferecido pelos campos, matas, banhados e pela lagoa de águas rasas e ricas em crustáceos, moluscos, vermes e peixes que fazem dali um dos locais mais importantes para a fauna ornitológica do continente sul americano.

Colheita abundante de cogumelos comestiveis no iníciodo outono

 Agora, para iniciar bem o novo ano, estou envolvido com outro trabalho que será sobre o nosso maior rio - o Uruguai. Estou já aqui em São José dos Ausentes para iniciar uma série de crônicas sobre as nascentes deste belo e importante rio. As crônicas deverão iniciar em breve e os trabalhos de campo já iniciaram com as pesquisas de locais de nascentes e identificação de nomes dos arroios e rios que formam o famoso Uruguai.

Sempre com energia renovada, emanada da minha família e dos amigos aqui da Estância Tio Tonho, pretendo cumprir mais este desafio que me impus e compartilhar com vocês o que encontrar, contando sempre com importantes apoios de empresas e pessoas da comunidade que tornam possível estas minhas investidas. Desejo a todos um grande 2019 e que ele venha cheio de novos desafios e empreitadas junto a natureza, este banco de dados inesgotável que me fascina, ensina e tanto me desafia.  

O tempo, o vento e Canela-RS

A praa se enfeita pra o Natal(1)Praça central da cidade enfeitada para as festas do Sonho de Natal

Depois de mais de 40 anos, resolvi reler o clássico O tempo e o Vento, do imortal Érico Veríssimo. Li os sete volumes da trilogia famosa quando morava em Porto Alegre, na década de 70, e confesso que nesta releitura percebi muitos detalhes e primores da escrita narrativa e empolgante da saga dos Terra- Cambará me mostraram um mapa mais preciso da evolução social e política do nosso Rio Grande e do Brasil. Do embrião da cidade fictícia de Santa Fé até o final da saga, deu para rever e entender melhor a evolução dos processos de colonização e ocupação dos espaços geográficos do nosso Estado.

Automaticamente me transporto para a minha Canela, cidade que me pariu e me viu crescer e traço paralelos com muitos dos pontos encontrados naquela cidade de Érico Veríssimo. Muitas lembranças desta minha cidade dos anos 50 e 60 me afloram quando passeio pelas páginas dos livros, e vejo que muitas coisas são semelhantes nos embriões e no desenvolvimento das cidades. Lembro de ler dos pioneiros que por aqui chegaram, seja como tropeiros ou como estancieiros, e que iniciaram o núcleo urbano que não parou mais de se expandir até hoje, com suas virtudes e seus problemas inerentes.

Novos tempos buscando resgatar a histria da cidade(1)Novos tempos, novos projetos que buscam resgatar a história da cidade

Foleando as belas páginas do livro Canela ontem e hoje, com suas fotos comparativas do passado e do presente, viajo no tempo e vejo o como era e o como está, e jogo tudo imediatamente para o como estará a minha cidade num futuro próximo. Algumas coisas me encantam, algumas mudanças e evoluções urbanas são muito positivas, outras nem tanto e algumas criam uma sombra de verdadeira preocupação com o amanhã. Lembro dos tempos dos poucos, pouquíssimos carros que circulavam pelas nossas ruas e vejo hoje o que todos veem e sentem. As ruas, estas são as mesmas, mas o número de automóveis cresceu mais do que se poderia imaginar. Casas antigas do centro da cidade, tradicionais e com seus terrenos que outrora tinham espaço para horta, poço, garagem, galinheiro e ainda sobrava para algum pinheiro ou guabirobeira, são substituídas por suntuosos e apertados prédios que, com suas formas e cores, mudam o cenário para um novo século, um novo tempo, uma nova realidade. Mas as ruas ainda são as mesmas.

Trabalhos com Educao Ambiental nos parques da cidade(1)Trabalhos de Educação Ambiental nos parques da cidade

Nossos arroio e nascentes, por emporcalhados que foram, são canalizados e escondidos, circulando anonimamente por debaixo das ruas e prédio carregando nossos dejetos para longe de olhos e narizes. Continuamos a beber, tomar banho, lavar carros e calçadas com a preciosa água do Rio Santa Cruz que depois é devolvida, via Arroio Caracol, ao mesmo manancial alguns quilômetros abaixo, agora com o nome de Rio Caí. E o rio Santa Cruz continua o mesmo.

Com meus 67 anos recém feitos, vejo a evolução desta bela cidade com olhos desconfiados de quem sabe que o brete é estreito e a manada grande e que só aumenta. Com o perdão da comparação, vejo assim a situação. Como em Santa Fé do Veríssimo, Canela mudou, cresceu, recebeu e perdeu linha férrea, estradas, gente de muitos lugares, de muitas etnias e com isso também vieram novas ideias, investimentos e também os problemas inerentes. Enfeita-se para o natal e Páscoa como poucas cidades e sabe bem receber os visitantes. Não vejo como segurar o crescimento, assim como o Dr. Rodrigo Cambará assistiu as mudanças inevitáveis de Santa Fé. O modelador de tudo é o tempo e o vento, como bem sabia Érico Veríssimo.  

Vendo, ouvindo e sentindo

Graxaim-do-campo patrulhando seu ambiente

Procuro sempre algum lugar remoto onde a paisagem me remete a ausência de rastros humanos ou, pelo menos, com o menor indício de sua presença. Estou agora num destes lugares que escolhi a dedo, tendo à frente o horizonte norte e um mar verde de campos nativos com uma mistura equilibrada de capões de matas de araucária e banhados formando nascentes de pequenos rios. Os matizes de verde impressionam porque variam de um verde intenso e claro, típico da tonalidade que mostra o vigor dos campos de primavera a um verde escuro das araucárias que dominam as matas. Os banhados mostram uma paleta de cores mais variada, com suas pequenas flores, ervas e musgos. Este equilíbrio de tons de verde e cores relacionadas dá a paisagem um toque de artista, de pintor de quadros que escolhe fiel e exaustivamente as cores que vê e transporta ao quadro. Pinceladas de sombras escuras se projetam no chão dos capões abertos, revelando a posição do sol no momento e a hora do dia.

Paisagem campeira e capões de araucárias

Os sons das aves se misturam a paisagem e criam uma música de fundo, com uma profusão de instrumentos que se completam na confusão de participantes que tocam comandados por um maestro que não enxergam, mas sentem. Assim percebo que algumas perdizes se comunicam com seu trinado curto e inconfundível, ocultas que estão pelo gramado alto do campo, não se vendo, mas se ouvindo e se encontrando no complexo labirinto de talos de gramíneas da vegetação que, para elas, deve ser semelhante a uma floresta para mim.  

Gralha-azul me espreitando enquanto escrevia esta crônica.

O vento sarandeia pelos galhos das araucárias fazendo com que dancem ao som de uma música ancestral, girando prá lá e prá cá e emitindo sons que me parecem de alegria, como se elas estivessem num baile campeiro muito alegre e divertido.

Um bando de gralhas se aproxima de mim na sombra da borda de uma mata, sentado e escrevendo, e começam a espiar este intruso que parece não se mexer. Uma formiga sobe pela minha canela, vencendo o cano do coturno e entrando por baixo da calça e começa a subir e explorar o emaranhado de pelos fazendo cócegas, o que me obriga a uma remoção do intruso. Com meu movimento, as gralhas se espalham e desatam num estridente som de alerta, quebrando a harmonia dos sons anteriores. Um canário-da-terra, cujo macho é todo amarelo, pousa no topo de uma araucária próxima e começa a cantar para uma fêmea invisível. Seu canto parece um chamado desesperado, melodioso, sibilante, harmônico e alegre, para ser ouvido e querido por uma parceira. É a primavera e seus efeitos sobre os animais e plantas.

Campo de altitude com araucárias esparças

As sombras do capão estão mais longas, indicando o passar das horas. Um bando de corucacas passa a baixa altura sobre o campo com seus “crác” crác” característicos, indo para algum lugar na direção do oeste onde estão as casas da estância. Um quero-quero dá um alarme distante, sugerindo algum intruso em seu território que, nesta época, está pontuado com ninhos ou já com filhotes, tão pequenos como pintos recém descascados. São presa fácil para os graxains e gaviões que rondam o campo sem descanso. O vento segue animando o baile das araucárias e parece que vai longe o fandango. Recolho minha cadeira campeira, meu notebook, meu chimarrão, meu olhar, meu apreço pela paisagem e retorno, despacíto, para a estância Tio Tonho. 

As flores da batata-de-perdiz

No meio das pedras e nos barrancos, na primavera surgem as flores alaranjadas da planta conhecida como batata-de-perdiz, aqui nos campos de S. J. dos Ausentes. 

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