Blog Andando por Aí

Alguns privilégios da minha geração

The danger boysDa esquerda para a direita: Carlos Saul, Jair da Veiga, Gilberto Travi e Vitor Hugo Travi

Todas as gerações têm seus ídolos e acontecimentos impactantes que as acompanham pelo resto da vida. A minha não foi diferente e vou dar aqui alguns poucos exemplos que foram marcados a fogo.

- Vivenciei a construção do nosso maior monumento urbano, a Catedral de Pedras. Diariamente, quando ia para as aulas no Colégio Marista, via e ouvia os pedreiros batendo seus martelos nas ponteiras de ferro para alinharem milhares de pedras de basalto que iam se encaixando e revestindo as paredes deste famoso monumento. Aquela cadência de batidas parecia uma música monótona de algumas poucas notas que persistia por horas, dias, anos...

- Conheci o Parque do Caracol quando ainda era a propriedade particular da família Nunes e, para entrar e ver a cascata que falavam que ali existia, passávamos por uma cancela, igual a tantas que existem até hoje nas fazendas por nossa região, atravessávamos um potreiro e lá estava a cascata, jorrando imponente a água num vazio de mais de 130m e produzindo um som grave e acachapante de coisas grandes sendo quebradas e moídas. Aquele som ouvido pela primeira vez, até hoje eu o identifico na memória quando me lembro da cascata. Acampávamos onde hoje é o estacionamento de ônibus do parque, sempre em noites de lua cheia, para podermos saborear o efeito da tênue da luz nas águas da cascata que se acendia com longos filamentos prateados e se quebravam nas pedras do poço.

- Fui contemporâneo de uma banda inglesa que surgiu para o mundo em 1963 e que fazia um sucesso arrebatador, envolvente e indescritível. Falo dos Beatles. Nesta época eu tinha 12 anos e os Beatles e seus sons entraram direto na veia sem pedir licença. Recebíamos os discos de vinil direto de Porto Alegre, trazidos por algum amigo, e ouvíamos até quase gastar os sulcos... Indescritível o que aquelas músicas faziam em todos nós. Lembro-me de um aparelho de rádio que tínhamos em casa, sempre sintonizado na rádio Guaíba, que tocava todos os dias alguma música dos Beatles. Meu pai me perguntava: “quem são estes bitlis?”  E eu dizia que era um conjunto da Inglaterra que usam cabelos compridos e tocavam guitarras. O cabelo comprido era um desejo e um desafio de tentar deixá-los igual aos dos ídolos, mas o padrão da época para pré-adolescentes como eu, era o corte cadete, aquele cuja cabeça parecia a de um milico no quartel. Lentamente fui conquistando alguns centímetros de cabelos mais longos e isso era fantástico. Criamos uma banda que era uma cópia canelense dos Beatles – os Danger Boys. Meu falecido irmão Beto encarnava o Jorge Harrinson, o Jair da Veiga era o Ringo Star, o Carlos Saul pensava ser o Paul McCarteny e eu, pretensiosamente, era um sósia do John Lennon. Na rara foto que ilustra esta coluna, os Danger Boys tocaram no Clube Serrano no aniversário de uma amiga, a Maria Luiza Spindler.

Cinquenta anos depois, vejo que os Beatles não eram um sucesso daqueles anos apenas. Até hoje suas músicas são atuais, ouvidas, curtidas e passadas de geração em geração. Uma característica desta banda era o de não ser identificados pela voz de um cantor apenas, mas o talento era do coletivo. Músicas com harmonias de três vozes embalavam a juventude dos anos 60 e ainda continuam. Todos os quatro cantavam, apesar do domínio da dupla Lennon& McCarteney. Considero-me um privilegiado por ser da geração Beatles, o grupo que mudou a música que até hoje reverbera na minha mente como, numa outra escala, o brandir dos martelos daqueles anônimos pedreiros que ergueram a nossa catedral e o som grave das águas do Arroio Caracol quebrando coisas no poço da base da cascata.

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