Blog Andando por Aí

Encontro com as seriemas

 

Duas seriemas desfilam tranquilas diante de mim.

Sempre quis ter a possibilidade de ficar perto dos animais selvagens sendo, eu, apenas outro que não os ameaçassem. Algo como quando um cavalo passa perto do gado ou quando as garças andam juntas com as capivaras sem que uma veja a outra como potencial predador. Frustrei-me incontáveis vezes quando encontrei, em diferentes ambientes, cutia, lontra, garça-grande, veado-campeiro, veado-virá, furão, gralha-azul, tuco-tuco, tatu-galinha, tatu-do-rabo-mole, graxaim, seriema, e um incontável número de espécies de aves, répteis e mamíferos que ao simples contato visual, disparavam como se eu fosse uma grande ameaça. Sempre ando sozinho para facilitar os encontros e aproximações, já que posso mais facilmente controlar o ruído e a visibilidade, mas quando sou percebido, eles fogem, de uma forma ou de outra. Parece que a fauna tem, já no ovo ou no embrião, o carimbo que nos identifica como espécie perigosa, potencialmente letal e isso não é nenhuma novidade. Nós, humanos, somos predadores natos e sempre perseguimos animais para os consumir e/ou escravizar para o trabalho e assim somos vistos por eles.

De tão perto, deu para ver detalhes da iris amarela da jovem à frente

Quando ando pelo campo, banhado ou mata aqui pelo Planalto procuro, sem pressa, qualquer coisa que me chame a atenção, como um aglomerado de nós de pinho no campo, como se fossem esqueletos de um pinheiro me contado que ali caiu e se desmanchou uma araucária em tempos passados; pode ser um fruto ou uma semente que espera o vento ou algum animal passar para ser levado adiante para colonizar novas áreas de campo; pode ser o rugido de alguma cachoeira escondida em alguma greta do campo que exige malabarismo para ser acessada e fotografada; pode ser um agrupamento de rochas expostas com suas diferentes formas e pinturas feitas pelos líquens, mostrando-me que pouco abaixo da camada fina de solo negro dorme um maciço de rocha basáltica com mais de mil metros de espessura; pode ser um rastro de algum mão-pelada ou veado-campeiro que andou por ali há pouco ou o som do vento apitando nas bordas afiadas dos cânions que emite uma música simples mas de uma candura e sabor que são inigualáveis.

Muito tranquila, ainda deu uma esticada na asa

Recentemente, andando pelos campos ermos e despovoados aqui de São José dos Ausentes, depois de andar e me embriagar com a paisagem, fui surpreendido com a presença próxima de duas seriemas que calmamente catavam insetos na borda de um banhado. Imediatamente parei e preparei a máquina, já sabendo que ao menor movimento, elas iriam disparar como sempre fizeram aqui. Surpreso, vi que elas continuavam forrageando e andando em minha direção. Pensei que não tivessem me visto e depois de algumas fotos, comecei a caminhar paralelo a elas. Como não demostraram nenhum sinal de estresse, virei e fui na direção delas sempre com a máquina apontada, fazendo registros. Pouco depois parei e fiquei encarando uma delas que veio direto na minha direção. Movimentei o corpo ela me olhava e continuava vindo, sem espanto e parecendo que eu não estava ali. Chegou tão perto que pude fazer um close da íris e identificar o adulto pela coloração marrom escura do olho e depois a outra, um jovem identificado pela íris amarela. Ela deu a volta ao redor de mim muito tranquila, atraindo a outra que veio também, com calma e sempre caçando insetos invisíveis para mim. Chegou o momento mais intenso do encontro quando ambas desfilaram a menos de um metro de mim como se eu fosse uma pedra do campo ou um animal inofensivo como tantos dali. Senti naquele breve momento o que é ser um elemento do meio, igual e elas, pertencendo ao ambiente como se eu ali também estivesse buscando comida, abrigo e me defendendo de predadores. Foi um momento único que não tinha ainda experimentado e considerei um prêmio pelo esforço de querer isso muito e há tanto tempo. Depois de muitas fotos e de conversas silenciosas que mantive com ambas, resolvi seguir meu caminho de volta a Estância e elas seguiram o delas, faltando apenas nos despedirmos com um aceno. Consegui sentir o vínculo que une a fauna, mesmo que por minutos, e gostei. Na língua Tupi, seriema significa “ave de crista levantada” e foi assim, com minha crista de orgulho e satisfação muito bem erguida, que segui meu caminho.

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