Blog Andando por Aí

Canela sem ninguém

Araucária1

(Texto escrito em novembro de 2017) No ano passado assisti um documentário chamado “O mundo sem ninguém”, escrito por David Brin, um astrofísico californiano que fez um exercício de ficção espetacular e medonho de como seria o nosso mundo se a espécie humana desaparecesse do planeta. Indo aos saltos no tempo, o filme mostra como a natureza reocuparia o seu lugar, assim que desocupássemos os ambientes na terra. Com filmagens em locais reais, abandonados por cinco, dez, cinquenta ou mais anos e com muita computação gráfica, o documentário retrata a volta do mundo ao que era antes da nossa espécie predominar. Fiquei com a certeza de que, por mais que façamos alterações por aqui, um dia as forças naturais vão reassumir seus postos com o mesmo vigor de antes.

Começo a andar por Canela e imaginar o cenário do documentário, ou seja, uma cidade cujos habitantes simplesmente evaporaram. Vejo carros parados, vazios, ruas limpas sem sons de buzinas e de motores, casas, prédios e construções silenciosas, sem movimento, sem transformações e ainda iluminadas. No primeiro dia sem humanos, a cidade parece quase normal, com os cães vadeando na rua e outros latindo dentro das casas e pátios, presos que estão. Olho para a nossa catedral e vejo apenas o monumento de basalto, frio e escuro sem aquele movimento intenso de pessoas orbitando em sua volta, tirando fotos e sorrindo. Pombos fazem revoadas e os pássaros mantem suas rotinas de busca de alimento e de fuga dos predadores.

Passada uma semana já noto uma mudança radical. Noites já escuras, sem nenhuma luz ligada devido ao colapso da Usina do Canastra, casas e prédios escuros como fantasmas petrificados. O cheiro de coisas podres é predominante, sendo exalado de cada residência, de cada açougue e de cada mercado já que, sem energia elétrica, não há refrigeração e as carnes e outros produtos perecíveis, apodrecem. Nuvens de moscas infestam o ar, ratos e baratas correm por todos os lugares, entrando e saindo de mercados onde suas gôndolas são saqueadas por eles e pelos cães famintos que vagam por todos os lados. Ainda ouço cães e gatos que estão presos nas casas, ou nos canis, latirem e miarem desesperados de fome e sede.

Dois meses depois noto que o cheiro de carniça diminuiu muito, indicando a inexistência de carnes e derivados sem conservante. Vejo um aumento tremendo no número de moscas causado pelo grande volume de carne disponível que havia, o que ocasionou uma postura incomum de ovos, gerando uma grande população de larvas e, posteriormente, de pupas e novas moscas.

Seis meses depois as ruas e calçadas já são tomadas pelas gramíneas que se aproveitam de cada fresta do calçamento para germinarem. Na ausência de jardineiros, crescem sem parar e até pequenas mudas de árvores já se instalaram, trazidas as sementes pelos ventos. Rachaduras no asfalto aumentam de tamanho e as plantas dominam os buracos, parecendo já gramados malconservados, mais do que ruas.

Passados dois anos e o cenário já pouco lembra a nossa querida cidade. Terrenos, outrora com belos e aparados gramados, já são incipientes florestas que forçam passagem e se espalham. A nossa praça central exibe os brinquedos das crianças já rotos, enferrujados e quebrados pelos galhos do grande pinus da esquina do Banrisul que caíram sobre alguns. Do multipalco só resta o piso, já que a lona de cobertura se rompeu e agora apenas farrapos dela abanam ao vento, presos pelo que resta da estrutura metálica. Os plátanos se agigantaram, livres que estão das podas da prefeitura, transformando-se em imensas árvores.

Sigo até o Parque do Caracol a pé, já que a estrada está toda interditada por desmoronamentos e árvores caídas e não removidas. Lá vejo que o pórtico está quebrado, as trepadeiras dominam o restante da obra que ainda resiste, envolvendo a velha madeira num verdadeiro abraço de morte. Chego no mirante e o vejo ainda íntegro, mas descascado de sua tinta, com muita grama e musgo crescendo por tudo, já que um pouco de solo se acumulou, trazido que foi pelo vento. A cascata está igual, com sua branca cabeleira se esparramando no fundo de rochas negras e lisas. Vejo os bondinhos do teleférico ainda dependurados nos cabos, notando que apenas o mato começa a esconder as torres. Sigo pelo mato até as corredeiras que antecedem a queda e vejo aquilo que sempre desejei: o Arroio Caracol com sua água cristalina, límpida, sem cheiro e potável novamente, como foi encontrado pelos pioneiros que aqui chegaram e pelas etnias nativas que tinham na água e na floresta de pinheiros o seu ambiente natural de sobrevivência. Caminhei pelo leito rochoso do arroio, tomei banho e a água, coisas que sempre quis fazer quando ali trabalhei no passado.

Dez anos se passam e vou ao parque do Pinheiro Grosso, encontrando muita dificuldade para chegar até o monumento, já que toda a infraestrutura de madeira que havia, ruiu, assim como a área da recepção e do museu. Telhados caídos, ninhos de coruja e de corruíras naqueles lugares mais protegidos e muitos sinais de fauna por todo lugar. O pinheiro grosso ainda está ali, forte, altivo e produtivo. Vejo no chão muitos pinhões e me dou conta que é outono, e a fauna se refestela com a fartura. Olho para o pinheiro e penso que ele deve estar muito satisfeito, sabendo que agora o ciclo natural vai seguir seu rumo, sem a interferência humana que viu nestes últimos 300 anos. Saio e vejo os dinossauros, do parque em frente, semidestruídos e o mato novamente se adonando do lugar, já há muito não reclamado pelos humanos. Vejo o arroio Pulador cristalino e sem lixo.

Sigo até o Parque do lago e constato que o que era uma grande área de recreação, aberta e com pistas de caminhada, ciclismo, canchas de esportes, academia ao ar livre sumiu, dando lugar a uma floresta densa com muitas araucárias e outras espécies. As águas claras do lago, agora sem aquele odor de esgoto, e a mataria que se formou na volta criou um cenário diferente, envolvendo completamente aquele círculo de pedras que, agora, fica difícil de ser localizado. Todas as construções em voltas estão em ruínas, muitas totalmente destruídas, outras ainda de pé, mas muito danificadas, como o Bar dos Alemão que já sem porta e janelas, virou casa de bichos. Pouco resta do que havia.

O Parque do Palácio virou um cenário de campo alto, com muitas plantas invasoras, como pinus e o tojo se espalhando por alguns lugares. O passador de água sob a rua que vai ao Lage de Pedra, há muito se rompeu e o arroio recuperou seu velho leito.

Cinquenta anos sem ninguém já se passaram e vou até a catedral, com muita dificuldade devido a total inexistência de ruas e outras referências, tomadas que estão pelo denso mato, com araucárias, cedros, erva-mate, ipês, camboatás, murtas e outras espécies. É difícil até de divisar a obra, devido ao bloqueio visual que o mato impõe, mas consigo ver o que resta da torre frontal e noto que ela também está sendo destruída pela erosão do tempo. Muitas pedras do revestimento já caíram e os tijolos que formam o miolo das paredes, estão perfurados e o lado sul da obra já tem uma das paredes caída, criando um grande volume de entulho já coberto pela vegetação rasteira.

Tento entrar e subir na torre pelo que resta da escada e, com dificuldade, consigo chegar a uma altura ainda segura, no local dos sinos, que já caíram. Olho para a frente e vejo aquele panorama verde denso, salpicado aqui e ali por algum resto de construção, mas o domínio mesmo é da mataria, aquele denso mar verde de araucárias que retornou com todo vigor e disposição, imiscuindo-se entre alicerces e paredes, pedindo passagem e pouco se importando com o que ali havia.

Desço e vejo no interior da igreja uma matilha de cães selvagens, os que foram selecionados pela força dos elementos da natureza, e percebo que são muito parecidos com aqueles pelo-duros que vadiavam por aqui enquanto nós também habitávamos o lugar. Cães fortes, sem os defeitos de raças criadas para nos agradar, estes canídeos agora circulam pela área caçando e se reproduzindo e dando origem a uma nova raça, que deve já competir com os graxains e outros pequenos carnívoros.

Nuvens de papagaios vagam pelo ar, pousando nas copas altas das araucárias. Centenas de aves e mamíferos proliferam e reassumem seus espaços, furtados por nós que foram, há muito tempo.  

Cem anos depois, retorno e vejo que as referências que havia da cidade, simplesmente desapareceram. Os poucos restos de prédios que vejo são negras colunas de concreto tapados de trepadeiras, liquens e musgos. Elevo-me na paisagem, como um drone humano a partir do que fora a estação do trem, e vejo que o mar verde da floresta ainda exibe, bem lá na frente na direção leste, uma ponta negra de cimento carcomido, apontando ainda para cima, sinalizando o que resta da catedral. A cruz de metal há muito foi consumida pelo oxigênio, que a corroeu pedaço por pedaço. Muitas coroas de araucárias gigantescas se colocam lado a lado neste cenário e aquela ponta negra persistente me diz que algumas de nossas marcas deixadas aqui são mais perenes que outras, mas um dia elas vão sumir também, assim como nós, a não ser aqueles monumentos que foram construídos com pedras, por que elas resistem mais e melhor a passagem do tempo do que nós.

Acordo do devaneio e fico pensando que isso realmente é possível de acontecer. Ou não. Esperemos....

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