Blog Andando por Aí

Luta pela comida

Tico-ticos

Há mais de dez mil anos a espécie humana desenvolveu progressivamente habilidades para plantar, colher, criar animais e estocar alimento para consumo futuro. Isto libertou a espécie de ser caçadora e coletora de alimentos, como até então era, devido ao fato de gerar excedentes que eram armazenados, libertando as pessoas de busca diária de proteínas.

Hoje cedo, tomando meu mate e olhando pela janela da sala, vi um pequeno bando de tico-ticos pelo gramado bicando grãos, pequenos insetos e qualquer coisa que seja possível ingerir e digerir. Fiquei pensando que as aves assim como os outros animais, continuam sendo caçadores ou coletores de alimentos, como fomos por milhares de anos. A gralha-azul pode ser uma exceção, já que armazena algum estoque de pinhões no solo para alimentação futura, mas de resto, a batalha pelo alimento é diária, hora a hora, minuto a minuto. Aqueles mais rápidos em localizar uma fonte alimentar, ou aqueles que melhor disputam e aproveitam um pouco do que é encontrado, beneficiam-se de alguma forma, crescem rápido, armazenam energia para o inverno e para a disputa de fêmeas na próxima estação de acasalamento. Os tico-ticos do meu e do seu jardim acordam com a alvorada e se põem imediatamente em ação para localização do alimento. Isso com chuva, sol, geada ou vento forte. Nesta busca de comida pelos gramados, correm sérios riscos de serem pegos por um gato doméstico, um tiro de funda ou ainda por alguma cobra que está por ali com o mesmo objetivo deles – o alimento. Esta é a palavra-chave. Alimento. Quando temos, tudo anda melhor, mais leve. Quando não temos, o caos se instala e aí voltamos a ser um bando de tico-ticos disputando o que encontramos pela frente.

Lembro-me agora de ter visto um gavião-carrapateiro sobrevoando uma araucária no pátio do vizinho e logo saírem os pequenos suiriris e as tesourinhas atrás dele, afugentando-o com rasantes e bicadas. O predador sabia que ali tinha presa fácil, ou nem tanto, e ficava rondando o local atrás de filhotes ainda nos ninhos, que ainda não sabiam se defender dos predadores aéreos. A disputa pelo alimento se dá tanto no jardim como na copa dos pinheiros, mostrando-me que a fome é universal e não escolhe lugar. Ela começa na concepção – e aí as fêmeas abastecem os embriões ou o suprimento armazenado no ovo garante as primeiras refeições. Depois o apetite interminável segue assombrando o indivíduo até seu último dia de vida. É a nossa maior e mais densa sombra, que nos acompanha cada minuto. Vencer a fome diária é a batalha mais medonha que se disputa na natureza, sem trégua e sem amenidades. Ou encontra alimento, ou morre de fome. Herbívoros tem vantagens em alguns casos, mas mesmo a grama pode faltar.

Quando entramos num mercado em busca de coisas para um almoço ou jantar, temos apenas que escolher os produtos e adaptar tudo ao que se tem na conta, na hora de passar o cartão. Só isso. Mas já fomos diferentes e é bom não esquecer que, num passado não muito distante, antes da agricultura e da pecuária, agíamos como este bando de tico-ticos que vejo agora no jardim. Evoluímos, mas o preço foi e continua sendo alto. Gosto dos tico-ticos e de sua resignação de caçadores e coletores.

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