Blog Andando por Aí

A conversa da gralha-azul

Uma gralha-azul com seu tesouro no bico

Parece coisa de maluco, mas eu afirmo que já ouvi, muitas vezes, a sutil conversa das gralhas-azuis. Isso mesmo, uma conversa em baixo volume, quase imperceptível. Todos sabem do adágio que diz que pessoas que falam alto, de forma estridente e continuada, são comparadas às gralhas: “parecem umas gralhas”, se diz. Acontece que há um outro repertório sonoro que elas utilizam, além deste festival de gritos emitidos quando um bando se sente ameaçado em seu território. Eles servem como um alerta que é disparado por aquelas que ficam de sentinela, enquanto o resto do bando se alimenta, alertando os demais para um perigo eminente.

Em algumas ocasiões, quando consigo me aproximara de um bando sem ser percebido, ouço o suave sibilo das gralhas, que parece nitidamente uma conversa ao pé do ouvido, de baixo volume. Para ouvir esta “prosa”, o local tem que ser ermo, silencioso e eu não posso ser visto por elas. Dentro da mata de pinheiros, sentado quieto em algum tronco, pedra ou no chão, fico dissimulado no território do bando e começo perceber, apurando o ouvido, que se desenrola um diálogo muito baixo, intenso e contínuo entre os diversos indivíduos do bando. É um som de estalidos e pios como se cochichando elas estivessem, enquanto se alimentam. É um momento raro que consigo desfrutar junto a intimidade do bando, que pode se traduzir por alguma discussão sobre os pinhões, que são abundantes e muito saborosos, onde enterrá-los, quais os pinheiros que estão com as pinhas maduras, etc. Isso tudo se desenrola num cenário idílico, cheio de cheiros e sons suaves produzidos pelo vento e pelas gralhas dentro da mata de araucárias. O bando segue se alimentando e “conversando” em tom muito baixo e imagino que podem, muito bem, estarem discutindo sobre a presença discreta de um estranho que está no solo, sentado sem se mover, parecendo um humano.

Vejo, sem me mover, que de vez em quando uma das gralhas desce ao solo com um pinhão no bico e procura um local seguro para enterrar a semente. Anda atenta até encontrar uma fenda entre pedras, troncos ou moitas com folhas formadas pela serapilheira, a semente dourada é cuidadosamente acomodada e coberta, como se um tesouro fosse. Este comportamento preventivo visa a criação de depósitos espalhados pela floresta toda, próximos ou distantes do pinheiro fêmea que os produziu, visando o abastecimento em dias mais difíceis, fora da estação de abundância – o outono. Muitos destes tesouros germinam antes das gralhas resgatarem o seu dividendo, tornando-se novas araucárias e garantindo a disseminação da espécie.

Um aentinela do bando cuidando e dando o alerta com a minha presença

Quando canso de ouvir a conversa do bando, levanto e estico as pernas cansadas de estarem dobradas, ando um pouco e sou logo identificado pelas sentinelas com um intruso de fato, uma ameaça verdadeira. Imediatamente cessa o chilreado discreto do grupo e tem início a gritaria que chega a tontear de tanta estridência e intensidade, quebrando o silêncio açucarado do local. Muitas gralhas se aproximam de mim, olhando e gritando, tentando intimidação e forçando o meu afastamento. Quando resisto a evasão, quem se afasta é o bando, saindo uma de cada vez, sumindo sem barulho de asas entre os galhos das araucárias, aborrecidas pelo incômodo que causei, interrompendo um momento importante do grupo, um momento de comer e conversar. É como se alguém chegasse para perturbar um almoço onde se confraterniza uma boa comida e a conversa flui descontraidamente, obrigando a todos se levantarem e abandonarem a mesa, não sem muitos protestos sonoros e ameaças ao invasor. Compreendo as gralhas e tento, sempre que possível, não interromper seus momentos de forrageamento e socialização. Elas, como nós, necessitam destes momentos.

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