Blog Andando por Aí

A força da lembrança

Praia de Arroio Teixeira, RS

A praia de Arroio Teixeira tem, para mim, um apelo sentimental muito forte e que me remete aos bons tempos de guri, quando ficávamos por lá um mês inteiro de bons verões sarandeando pelos cômoros de areias, levando torrão de descascar a pele como fazem os lagartos e brincar de carro de corrida, onde cada um era o piloto e seu próprio carro, pelas largas avenidas gramadas da pequena e incipiente comunidade. Meu pai tinha uma casa que dividia com um tio, então ficávamos um mês e eles o outro, e assim íamos trocando a cada ano, ora em janeiro, ora em fevereiro, mas sempre era muito divertido.

Para chegar na praia já era uma verdadeira aventura, cruzando os campos de São Francisco de Paula em estradas poeirentas até a boca da Serra do Pinto. Com sorte podíamos apreciar a paisagem belíssima e assustadora da serra e seus peraus, recortes e matas densas com o horizonte ao fundo mostrando o nosso local de chegada: o litoral. Descer a serra era arriscado e lá íamos sacolejando e vomitando até a base da serra, onde o pai parava à beira de um arroio para um piquenique. A galinha com farofa e outras delícias que a mãe preparava reconfortavam o estômago tão sofrido com as constantes regurgitações sofridas até ali.

Quando finalmente chegávamos em Curumim, era o alívio e o encantamento de rever o mar e as areias brancas e dançantes dos cômoros ribeirinhos. Seguíamos pela orla até a entrada de Arroio Teixeira e torcíamos para o carro não atolar no areal. Em casa a coisa era outra. Fechada o ano todo, ela tinha vários problemas, e um deles era a água. Naquela época, cada casa tinha um poço de onde tirava a sua água, bombeada manualmente até a caixa. Este era, para nós crianças, o serviço mais duro a ser feito na praia. Cada um tinha que “bombear” uma quantidade de vezes e ficar ouvindo a água subir pelo cano e se derramar na caixa acima. Era duro, mas divertido. Luz elétrica era outra coisa interessante. Havia um motor a diesel gigantesco que movia um gerador, que ficava ali por perto de casa. Ligavam pela manhã umas duas horas e depois a noite, até as 24h. o resto da noite era uma escuridão quebrada apenas por velas, lampiões e lanternas. Lembro que ficávamos brincando na rua até o “primeiro sinal”, que era dado quando o gerador era desligado e religado, avisando a todos que dali poucos minutos a luz seria desligada. O “segundo sinal” era o prenúncio da escuridão aguardada com expectativa e apreensão. Tudo silencioso, escuro e nossas pupilas totalmente abertas. Ali começa um novo período de brincadeiras que, não raro, levava um de nós a se cortar em alguma cerca de arame ou machucar com quedas e tropeços em pedras invisíveis.

Estive este final de semana em Arroio Teixeira e fiquei andando e relembrando minha infância. Nada mais é o que era, pois sumiram os cômoros de areia; surgiram os postes de energia elétrica, agora abundante o ano todo; não existem mais poços de água e bombas manuais; as avenidas gramadas foram pavimentadas e as ruas asfaltadas; multiplicaram-se muitas vezes as casas; a nossa casa querida e carregada de histórias, foi demolida. Mas o mar me pareceu o mesmo, com seu encanto hermético que desafia a todos, seu cheiro de sal e suas areias pontilhadas de tatuíras, garças e mariscos. Apenas a noite ficou mais clara e mais sonora, o que me leva a pensar que a lembrança é mais forte que o tempo, pois ela não pode ser demolida.

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