Blog Vale do Rio Silveira

Hoje eu sou um açude

Ainda lembro de um tempo em que eu era uma vertente forte que jorrava água para fora da terra e deixava escorrer pelo terreno com pressa, empoçando aqui ou ali em algum buraco do terreno, ora vendo o sol pelo campo, ora deslizando na sombra de alguma floresta, mas seguia sempre decidida a encontrar outras águas vindas de outros lugares e que iam se somando, aumentando e seguindo sempre a frente até o mar.

Meu local de origem é um buraco que surgiu de uma falha nas rochas e uma pressão interna me impulsiona para fora, como se alguma coisa dissesse: “saia e vá dessedentar os bichos e as plantas até se misturar no mar salgado”. Assim nasci e assim estive por muitos milhares de anos, sempre vendo o que acontecia a minha frente, a partir da minha toca. Em épocas de seca, eu diminuía, mas não parava. Em períodos de enchente recebia a companhia da chuva que me ajudava muito a engrossar o meu curso e impor respeito na paisagem. Sempre apreciava quando homens e animais viam beber da minha seiva cristalina e fria e pensava que sim, eu tinha muita importância!

Um dia vieram homens e máquinas e começaram a rasgar as encostas pouco abaixo de mim e trancar meu curso com muitas pedras. Não entendi, mas como nada podia fazer, fiquei olhando e vertendo minha água que logo ficou turva e suja com o movimento de máquinas e gentes. Passou um tempo e um grande muro de pedra e barro cortou meu caminho e, não tendo saída, fiquei ali rodando e enchendo o lugar com minha seiva cristalina e fria, agora marrom e fria. Chegou um dia em que enchi tanto que consegui sair por um tubo que eles fizeram no lado desta barragem. Assim consegui verter e seguir novamente meu curso e logo reencontrei velhos amigos que me pediam o que havia acontecido que eu sumira. Explicava a cada um o acontecido e vi que já havia outros amigos que tiveram a mesma experiência.

Hoje o meu buraco está coberto com muita água, no que eles dizem ser um açude, mas continuo vertendo minha seiva que agora já voltou a ser cristalina e me transformei em um grande lago com minhas margens com alguma vegetação típica que não existia antes, como juncos e aguapés e margaridas-do-banhado. Junto com estas plantas vieram garças, marrecas, marias-faceiras e martim-pescador, bichos que nunca tinha visto e que trouxeram nas suas patas cheias de barro de algum lugar distante, ovos e larvas de diversos animais que aqui se instalaram com sucesso. Meus novos amigos vêm pescar ou caçar e embelezam minha lagoa, sem falar que o gado e os cavalos passam por aqui todos os dias para beberem um pouco, tornando-me assim um lugar de encontros.

Estou feliz pelo que me fizeram, pois conheci muitos amigos novos e mesmo que me tenham coberto com água o buraco de onde eu saio, isso não me afetou em nada e só melhorou a minha vida de água nova, de água que brota de algum fundo de rocha e que vem para correr, dessedentar e embelezar a paisagem serrana. Hoje eu sou um açude, mas já fui só uma vertente no campo.

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