Blog Vale do Rio Silveira

Recicladores

Crânio de capivara já limpo pelos diversos recicladores

Criar gado na região nos campos e várzeas do Vale do Rio Silveira é uma atividade ancestral que foi trazida pelos primeiros colonizadores que se encantaram com a pujança dos campos nativos de altitude. Clima severo, é certo, mas com paciência e domínio das técnicas de criação, foram se implantando as sesmarias e as divisões de terra para criação do gado rústico que fornecia carne para o charque, couro, queijo e derivados que eram trocados por outros gêneros durante as tropeadas serra abaixo.

Urubus-de-cabeça-preta em atividade sobre uma carcaça de bovino

Uma das coisas que ocorre, muitas vezes a revelia dos criadores, é a morte de alguma rês que pode ser devido ao frio extremo, alguma doença ou até picada de serpente. Andando pelos campos aqui na costa do Rio Silveira, vejo bandos de urubus-de-cabeça-preta que circulam em um grande redemoinho indicando, no seu vértice, um provável local de morte. Sigo na direção do bando negro e sinistro destas aves injustamente malvistas e identifico logo adiante uma carcaça. Alguns dos urubus já estão se refestelando com a carcaça e com seus poderosos bicos afiados e em forma de gancho, vão rasgando e puxando as partes mais moles do bicho. São os recicladores mais notáveis dos nossos campos, não perdendo uma carcaça que seja e deixando limpo o local em poucos dias, auxiliados sempre pelos graxains, caranchos, chimangos e outros generalistas alimentares.

Carancho, um dos tantos carniceiros que se refestelam com as carcaças

Tão importante como as bactérias e fungos, que reciclam os restos orgânicos no solo ou na água, os carniceiros aéreos têm um papel muito importante na natureza, não permitindo que cadáveres fiquem contaminando solo e água dos campos por longos períodos. Temos muitas espécies de urubus no Rio Grande do Sul – urubu-de-cabeça-amarela, urubu-de-cabeça-vermelha, urubu-de-cabeça-preta e urubu-rei. O último é o mais raro, e o penúltimo o mais comum. Depois de alguns dias passados, a carcaça de um boi fica literalmente virada em couro e osso, sendo que todas as partes moles formadas pelas vísceras, músculos, gordura, tendões e cartilagens são consumidas, restando o esqueleto espalhado em muitas partes e o couro rasgado que antes cobria um corpo. Com um pouco mais de tempo, o couro vai ser devorado e sobrarão os últimos testemunhos do que fora um dia um boi: seus ossos e dentes. Com o tempo serão roídos a exaustão pelos graxains, enterrados polo vento e chuva e finalmente se desmancharão por ação de microrganismos do solo. Se forem cobertos por lama fina em algum banhado e escaparem da decomposição, poderão, daqui milhares de anos, mineralizarem seus tecidos orgânicos e se transformarem em fósseis que poderão contar a história do que havia por aqui nesta época. As proteínas dos bois mortos seguem na cadeia alimentar mantendo os recicladores vivos e atentos a qualquer outro cadáver que venha surgir no campo. Quando um urubu morre, transfere suas proteínas para outros recicladores e o ciclo segue de uma forma a nunca parar. É a vida se reinventando....

Couro e osso: o pouco que sobra de uma carcaça em alguns dias

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